quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Pontos negros/ Vozes

"A forma como me libertei da voz foi incrivelmente simples. Coincidiu com a época em que me libertei de umas dores musculares que sentia na nuca. Por minha decisão, deixei de ouvir a voz. Decidi subtraí-la. Não parei de avaliar a pertinência do que dizia, não comecei a contrariá-la em tudo, porque a voz deixou de existir. Criei um lugar de vácuo e atirei-a para lá. Esse lugar está selado por camadas e camadas de Zé Luis. Não sei com exactidão qual a matéria que impede a voz de chegar aos meus ouvidos interiores; sei, no entanto, que essa matéria é constituída por algo que encontrei em mim, uma espécie de minério, um filão desse minério. Alerta: metáfora de gosto duvidoso. A voz continua a existir, mas não voltou a assombrar-me. Hoje, sou eu que me rio dela, do seu snobismo, da sua mesquinhez. Mas o futuro vai chegar a qualquer momento. Por isso, este texto fica aqui, como uma espécie de mapa. Se a voz voltar algum dia, irei relê-lo para que nunca me esqueça de mandá-la embora imediatamente. E viver."
         retirado de "Abraço" de José Luís Peixoto-" Lá estás tu"

Pontos negros
Acrilico s/ papel / 68x50cm / pra venda

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sem erros

"Não queiras existir sem erros. As vestes de imperador conservam um homem assustado. Repara na angústia amargosa com que tenta manter fronteiras e castelos de areia contra as ondas do oceano. Não queiras fronteiras. Quer antes a distância, os teus braços a afastarem-se sem horizonte, as tuas palavras a desfazerem-se no ar. A imperfeição é muito mais bonita do que a perfeição porque a perfeição não existe. Ou, se existe, está ao lado do erro, faz parte dele. Se ainda estivéssemos nos princípios da espécie, poderíamos talvez acreditar em vidas certas e inteiras, mas acumulamos história, somamos milhares de anos, séculos a perder de vista, e tu tens o dia de hoje, tens este pedacinho de horas, esta coisa. Tens tanto.
Engana-te de propósito a fazer as contas. Falha o golo em frente à baliza. Despenteia-te. Escreve "sapo" com dê de cedilha: çapo. E também "sopa": çopa. Inventa combinações de números quando o multibanco te pedir o código. Contraria o GPS. Põe sal no café. Telefona à tua mãe e diz que querias ligar para as finanças. Despede-te quando chegares e diz olá quando partires. Senta-te no chão. veste a camisola ao contrário. E, por favor, calça o sapato do pé esquerdo no pé direito e calça o sapato do pé direito no pé esquerdo. Verás que não é assim tão desconfortável, que o calçado ortopédico é um exagero e que há muito mais do que aquilo que esperas naquilo que não esperas."
         retirado de "Abraço" de José Luis Peixoto

Reflexo mal feito
Acrilico s/ papel / 30x21cm / pra venda

Sem erros
Técnica mista / 48x38cm / pra venda


                                 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Gritos

"Então, comecei a ouvir uma gritaria anormal nas traseiras. Era a voz de um rapaz a gritar a plenos pulmões com uma rapariga. Acusava-a de ter cumprimentado uns colegas da escola e dava a esse facto uma importância maior do que grande parte das pessoas que conheço dão ao adultério consumado. No fim da frase mais banal, gritava os palavrões mais crus. E ficava à espera que a rapariga respondesse, mas a rapariga não dizia nada. Quando me começou a parecer que ia haver violência, ou que essa era uma perspectiva altamente provável, decidi olhar pelos buraquinhos dos estores. O meu espanto aumentou quando percebi que o rapaz, dezasseis ou dezassete anos, estava a falar ao telemóvel. Estava naquela gritaria absurda, naquele estereótipo da violência doméstica, ao telemóvel. Melhor assim, pensei. O problema foi que, passados poucos dias, voltou a acontecer. Após mais alguns dias, voltou a acontecer pela terceira vez. Essa era uma situação bastante incómoda porque, mesmo fechando a janela, os gritos do rapaz, atravessavam vidros, estores e paredes. A minha casa é pequena, mas tem bom ambiente, há um equilíbrio zen na minha desarrumação e o meu bem-estar depende dessa linha ténue. Assim, após a repetição dessas sessões de gritaria, tomei uma decisão. Há três dias atrás, na sexta-feira, ele voltou a aparecer e voltou à gritaria de sempre. Saí de casa, dei a volta ao prédio e, mesmo ao lado dele, com o meu telemóvel, comecei a gritar da mesma maneira, no mesmo nível, com a mesma entoação, com os mesmos palavrões. Olhou para mim durante segundos e foi-se embora. Ainda não voltou. Neste preciso momento, ao escrever isto, sorrio como sorri nesse dia e, interiormente, sinto gratidão por não ser uma pessoa normal e por viver aqui, no rés-do-chão."
           retirado de "Abraço" de José Luís Peixoto

Gritos
Acrilico s/ papel / 69x50cm / pra venda



domingo, 1 de janeiro de 2012

Moleza

"Mas de manhã está contaminado por um mal-estar difuso que, é certo e sabido, há de acompanhá-lo o dia inteiro. Preferia uma febre qualquer a esta moleza estranha que o faz ver tudo dentro de um estado de já-aconteceu, tudo envenenado por uma qualidade de indiferença e vazio. Liga a televisão, senta-se com o Joaquim a ver as notícias. A mulher já saiu para os Azeites, a casa só para os homens. Américo está-se nas tintas para a atualidade, como é óbvio, quer só ter alguma coisa para fazer, algum lugar para onde olhar, imagens que mudem rápido."
       retirado de "o verdadeiro ator" de jacinto lucas pires

Moleza
Acrilico s/ papel / 50x34cm / pra venda

Simpático e descontraido

"À noite, no jantar em casa dos sogros por ocasião dos seus trinta e cinco anos de casados, esforça-se por parecer simpático e descontraido. Ri-se de histórias antigas que já ouviu dezenas de vezes, elogia o arroz de pato, o vinho, o bolo, a nova toalha de mesa com grandes flores bordadas nos cantos, e até se contém, de dentes cerrados,  como um menino bem comportado, quando Vicentino Rosas, pai da sua mulher, lança uma das suas habituais atordoadas em relação aos emigrantes "pretos, castanhos e amarelos" que são todos uns esquerdistas, uns preguiçosos, uns coitados e tal"
         retirado de "o verdadeiro ator" de jacinto lucas pires

Pedaços levados pelo remoinho
Oleo s/ papel / 38x26cm / pra venda

Monstro vindo do mar
Oleo s/ papel / 48x38cm / pra venda