quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sem erros

"Não queiras existir sem erros. As vestes de imperador conservam um homem assustado. Repara na angústia amargosa com que tenta manter fronteiras e castelos de areia contra as ondas do oceano. Não queiras fronteiras. Quer antes a distância, os teus braços a afastarem-se sem horizonte, as tuas palavras a desfazerem-se no ar. A imperfeição é muito mais bonita do que a perfeição porque a perfeição não existe. Ou, se existe, está ao lado do erro, faz parte dele. Se ainda estivéssemos nos princípios da espécie, poderíamos talvez acreditar em vidas certas e inteiras, mas acumulamos história, somamos milhares de anos, séculos a perder de vista, e tu tens o dia de hoje, tens este pedacinho de horas, esta coisa. Tens tanto.
Engana-te de propósito a fazer as contas. Falha o golo em frente à baliza. Despenteia-te. Escreve "sapo" com dê de cedilha: çapo. E também "sopa": çopa. Inventa combinações de números quando o multibanco te pedir o código. Contraria o GPS. Põe sal no café. Telefona à tua mãe e diz que querias ligar para as finanças. Despede-te quando chegares e diz olá quando partires. Senta-te no chão. veste a camisola ao contrário. E, por favor, calça o sapato do pé esquerdo no pé direito e calça o sapato do pé direito no pé esquerdo. Verás que não é assim tão desconfortável, que o calçado ortopédico é um exagero e que há muito mais do que aquilo que esperas naquilo que não esperas."
         retirado de "Abraço" de José Luis Peixoto

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