segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Gritos

"Então, comecei a ouvir uma gritaria anormal nas traseiras. Era a voz de um rapaz a gritar a plenos pulmões com uma rapariga. Acusava-a de ter cumprimentado uns colegas da escola e dava a esse facto uma importância maior do que grande parte das pessoas que conheço dão ao adultério consumado. No fim da frase mais banal, gritava os palavrões mais crus. E ficava à espera que a rapariga respondesse, mas a rapariga não dizia nada. Quando me começou a parecer que ia haver violência, ou que essa era uma perspectiva altamente provável, decidi olhar pelos buraquinhos dos estores. O meu espanto aumentou quando percebi que o rapaz, dezasseis ou dezassete anos, estava a falar ao telemóvel. Estava naquela gritaria absurda, naquele estereótipo da violência doméstica, ao telemóvel. Melhor assim, pensei. O problema foi que, passados poucos dias, voltou a acontecer. Após mais alguns dias, voltou a acontecer pela terceira vez. Essa era uma situação bastante incómoda porque, mesmo fechando a janela, os gritos do rapaz, atravessavam vidros, estores e paredes. A minha casa é pequena, mas tem bom ambiente, há um equilíbrio zen na minha desarrumação e o meu bem-estar depende dessa linha ténue. Assim, após a repetição dessas sessões de gritaria, tomei uma decisão. Há três dias atrás, na sexta-feira, ele voltou a aparecer e voltou à gritaria de sempre. Saí de casa, dei a volta ao prédio e, mesmo ao lado dele, com o meu telemóvel, comecei a gritar da mesma maneira, no mesmo nível, com a mesma entoação, com os mesmos palavrões. Olhou para mim durante segundos e foi-se embora. Ainda não voltou. Neste preciso momento, ao escrever isto, sorrio como sorri nesse dia e, interiormente, sinto gratidão por não ser uma pessoa normal e por viver aqui, no rés-do-chão."
           retirado de "Abraço" de José Luís Peixoto

Gritos
Acrilico s/ papel / 69x50cm / pra venda



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